Olhos D'Água: Notas sobre um Mar de Lágrimas

21 março C. Vieira 0 Comments

AVISO: Estas resenha contém spoilers do livro.

Eu nunca havia lido um livro tão pequeno e tão doloroso. Pelo título, Olhos D'Água, eu imaginei que seria sobre a luta e o sofrimento de todo um povo que sobrevive a duras penas neste grande pedaço do território americano, chamado Brasil. Mas é uma dor "instrutiva" a que o livro mostra. Um pouco parecida com um tapa na cara, que dói mas que nos deixa alerta para a realidade à nossa volta.

Há pessoas morrendo, há pessoas morrendo por nada, e há pessoas morrendo pelo nada que se constitui a cultura da exclusão. Os personagens deste livro tem pouco ou nenhum acesso ao que lhes daria, no mínimo, a dignidade de existirem. Eles vivem pelas migalhas de um sistema cruel, que mata e submete até o ponto da insânia de se tomar veneno para se sentir no controle do próprio destino.

A Morte é quem governa estas vidas, nunca a própria Vida. E a cada conto, pode-se perguntar porque é tão difícil ler, como se fosse conosco que acontecesse, o que cada personagem vivencia; que é similar a realidade de alguém que pode estar sentado ao nosso lado, passando pela rua ou sendo deixada/o para trás por nossos passos apressados pela cidade.

Dói quando lemos, porque gera empatia, e ao mesmo tempo, vergonha.

Primeiro a vergonha, porque sempre soubemos que a vida era/é dura para pessoas pobres, pessoas negras, pessoas periféricas. Mas nunca realmente calçamos seus sapatos, ou caminhamos sobre a falta deles, para compreender o inferno que eles vivem a cada dia, a cada hora, a cada minuto.
E segundo, a empatia, que é algo intrínseco ao ser humano. Existe uma luta terrível para que não sejamos empáticos com outras pessoas. A insensibilidade virou sinônimo de força e sucesso. Por isso, é associada a pessoas ricas, que preferem que o abismo entre elas e as mais pobres, ou apenas pobres, se mantenha e se alargue cada vez mais. Porque elas sabem o quanto DÓI sentir EMPATIA. É voltar a ser humano, frágil, vulnerável, como, na verdade, sempre fomos.

Nossos "heróis" míticos são seres superpoderosos, indestrutíveis e quase imortais. Ser, ao contrário disso, apenas um ser humano é ser o oposto da vida imortal e é algo que não combina com nossos desejos de eternidade. Porque sabemos que vamos morrer. Um dia.
E como queremos ludibriar a morte, fugimos da empatia, que nos lembra que a dor existe. Que ela, a Dor, é Vida. Mas também tem prazo de validade. E este livro nos mostra a fragilidade, a vulnerabilidade e a finitude da Vida.

Eu preferia que não fosse um livro tão doloroso, a única palavra para descrevê-lo corretamente e que precisa ser repetida, mas é um mar de lágrimas que nos afoga a cada conto, a cada esquina que se dobra nesta leitura. É para sofrer com a mulher que teve muitos filhos mas quis apenas o último, mesmo sendo um filho de um estupro. Ou a que só deseja que os filhos provem um melão, mas que jamais volta para casa, para eles. Ou a que sonha com um futuro possível longe do marido que a oprime. Ou o rapaz de apenas quinze anos que podia estar em casa mas que acorda com dor de dente, deitado em uma calçada qualquer do mundo.

São muitas as formas de sofrer mostradas neste livro. Todas terríveis. Todas 'dolorosas' como a espetada de um punhal. Mas todas necessárias para enxergarmos o mundo como ele realmente é.

Mas, ainda assim, há um placebo. Na verdade, mais do que apenas um calmante, uma lufada de luz, que é a poesia de Conceição Evaristo. E não se sabe se lemos narrativas ou poemas de dor, porque a autora consegue tecer esta colcha perfeita e nos leva a brincar entre os lábios com suas palavras dispostas "no varal que é a linha" escrita.

Eu aplaudo a competência e brilhantismo de Evaristo em conseguir criar uma obra tão delicada e tão forte.

Meus olhos se tornaram d'água depois de lê-lo.

E, sinceramente eu espero que uma Ayolwa esteja, neste momento, apontando-se pelo caminho, para trazer de volta para todos a alegria que nosso povo tanto necessita. Que ninguém mais seja obrigada/o a "combinar de não morrer" e que haja a paz que faça com que menos mães tenham Olhos D'água como característica e legado para suas filhas e filhos.

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